Para quem é de fora, talvez tudo pareça igual, uma repetição das mesmas palavras e frases sem fim. Como aguentam? Será que entram numa forma de êxtase? No Sul do Brasil e no Mato Grosso do Sul, os Guarani cantam e dançam por horas e até por dias seguidos.
Cantar na própria língua dá aos Guarani força espiritual e corporal que ajuda na manutenção da comunicação com as divindades. Sem dançar e cantar, a vida do Guarani neste mundo estaria em risco. Como os deuses tocam seus instrumentos para fazer existir a Terra, os seres humanos também devem acompanhar. Todos fazem parte da mesma orquestra.
O primeiro canto sagrado foi entoado pela deusa dos Guarani Ñande Jarí (nossa avó). Com isso ela salvou a terra de perdição, porque Ñande Ramõi Jusu Papa (Nosso Grande Avô Eterno) que criou a Terra, quase chegou a destruir sua própria criação por um desentendimento com a mulher. Ele estava com profunda raiva, por ciúmes dos homens ocupando a terra. Mas ele foi sendo impedido por Ñande Jari com a entoação do primeiro canto sagrado realizado sobre a Terra, tomando como acompanhamento o takuapu: instrumento feminino, feito de taquara, com aproximadamente 1,10m, que é golpeado no solo produzindo um som surdo que acompanha o mbaraka masculino, espécie de chocalho de cabaça e sementes específicas.
O povo Guarani é muito religioso e conhece muitas atividades religiosas. Dependendo da situação e das circunstâncias (falta ou excesso de chuva, durante a coleta etc), os rituais são realizados cotidianamente, na maioria das vezes ao início da noite. Os ñanderu, lideranças religiosas, conduzem esses rituais. O ñanderu começa cantar o ´canto grande´, um texto que ninguém pode interromper. A comunidade repete cada frase, acompanhada pelo takuapu e mbaraka.
As letras e, principalmente, os instrumentos têm o papel de chamar os deuses. Os deuses respondem com o envio de seus mensageiros (tembiguáis kuéra), que vêm assistir aos cantos e às danças e retornam para informar que os habitantes da Terra estão alegres. Quando tem relâmpago e trovão durante os rituais, é um sinal que os mensageiros estão presentes.
A maneira como os Guarani cantam também tem significado especial. Os sons graves são próximos à terra, os sons de agudos estariam longe dela. As meninas têm que cantar forte e agudo, todas juntas, em coro, afinadas. Isso faz o coração contente.
Existe um mito Guarani no qual a diferença entre índios e não-indios é explicada. O herói criador deu para os índios o mbaraka e para os não-índios ele escolheu o kuatia jehairä (papel para escrever). Com estas escolhas o criador já explicou a diferença: o mundo sonoro e musical e o mundo da palavra escrita.
A gravação deste álbum reuniu 300 crianças e músicos de dez aldeias guarani e de uma aldeia tupi-guarani dos estados de São Paulo e Rio de Janeiro para registrar quatro modalidades da música guarani: acalantos, cantos religiosos infantis, duetos de flautas de bambu e temas da Dança do Tangará ou Kunhã Jerokya, executados com violão ou rabeca. O disco faz parte de um movimento cultural iniciado pelas aldeias Tenondé Porã, Boa Vista, Ribeirão Silveira e Sapukai, que estimula a realização dos corais infantis em várias aldeias guarani do Sul e Sudeste do país, as composições de novos cânticos e a recuperação de antigas modalidades musicais. O CD foi gravado entre 1999 e 2002 em estúdios móveis instalados nas Opy (casas de reza) das aldeias Tenondé Porã, Ribeirão Silveira e Krukutu
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