terça-feira, 3 de dezembro de 2013

CINCO EQUÍVOCOS SOBRE AS CULTURAS INDÍGENAS



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Se não tivermos conhecimento correto sobre a história indígena, não poderemos explicar o Brasil contemporâneo. As sociedades indígenas constituem um indicador extremamente sensível das características da sociedade que com elas interage. A sociedade brasileira se desnuda e se revela no relacionamento com os povos indígenas. Nesse sentido, buscar compreender as sociedades indígenas não é apenas procurar conhecer “o outro”, “o diferente”, mas implica conduzir as indagações e reflexões sobre a própria sociedade em que vivemos.

1° EQUÍVOCO – O ÍNDIO GENÉRICO
A primeira idéia que a maioria dos brasileiros tem sobre os índios é a de que eles constituem um bloco único, com a mesma cultura, compartilhando as mesmas crenças, a mesma língua. Ora, este equívoco reduz culturas tão diferenciadas a uma entidade supraétnica. O Tukano, o Desana, o Munduruku, o Waimiri-Atroari deixam de ser Tukano, Desana, Munduruku e Waimiri-Atroari para se transformar no “ÍNDIO”, isto é, no ÍNDIO GENÉRICO.

Hoje vivem no Brasil mais de 200 etnias, falando 188 línguas diferentes. Cada povo desses tem língua, religião, arte, ciência e dinâmica histórica próprias, diferenciando-se uns dos outros. Só para se ter noção dessa enorme diversidade, quando Frei Gaspar Carvajal desceu o rio Amazonas, em 1540, encontrou ali povos que falavam dezenas de línguas diferentes, tão diferentes entre elas como o português e o alemão. Trabalho feito pelo lingüista tcheco Cestmir Loukotka, em 1968, sobre classificação de línguas, mostrou que na Amazônia brasileira, em 1500, eram faladas mais de 700 línguas diferentes.

O grau de intercomunicação entre eles é variável. A diferença que pode haver entre a língua makuxi e a ingaricó, ambas do tronco lingüístico karib, é comparável à existente entre o português e o espanhol, ou seja, é possível estabelecer um nível mínimo de comunicação. No entanto, não é o que ocorre, por exemplo, entre a língua makuxi (karib) e a wapixana (aruák); entre línguas de troncos diferentes, as diferenças podem ser comparáveis à existente entre o alemão e o português, sem condição de entendimento.

2° EQUÍVOCO – CULTURAS ATRASADAS
A segunda idéia equivocada é considerar as culturas indígenas como sendo ATRASADAS e PRIMITIVAS. Os povos indígenas produziram saberes, ciências (em moldes diversos da nossa ciência), arte refinada, literatura, poesia, música, religião. Suas culturas não são atrasadas como durante muito tempo pensaram os colonizadores e como ainda pensam os mal-informados.

As línguas indígenas, por exemplo, foram consideradas pelo colonizador, equivocadamente, como línguas “inferiores”, “pobres”, “atrasadas”. Ora, os lingüistas sustentam que qualquer língua é capaz de expressar qualquer idéia, pensamento, sentimento e que, portanto, não existe uma língua melhor que a outra, nem língua inferior ou mais pobre que outra. As pessoas, no entanto, confundem muitas vezes as línguas com os falantes. O que existe são falantes que, na estrutura social, ocupam posições privilegiadas ou não.

As religiões indígenas também foram consideradas pelo catolicismo guerreiro, no passado, como conjunto de superstições. Entretanto, basta entrar em contato com as formas de expressão religiosa de qualquer grupo indígena, para verificar quanto esta visão é etnocêntrica e preconceituosa. Os Guarani, por exemplo, são considerados por estudiosos como “os teólogos da floresta”, devido à sua profunda religiosidade, que se manifesta a todo momento, no cotidiano, penetrando nas diversas esferas da vida. As próprias atividades econômicas aparecem muitas vezes como simples pretexto para a realização de cerimônias. A colheita de produtos de roça pode ser motivo para rezas e danças rituais. O ciclo econômico anual é, antes de mais nada, um ciclo de vida religiosa, que acompanha as diversas atividades de subsistência. A religião é, assim, um dos mais importantes fatores de identidade para os Mbyá.

As ciências indígenas também foram tratadas de forma preconceituosa pela sociedade brasileira. Os conhecimentos indígenas foram desprezados e ridicularizados, como se fossem a negação da ciência e da objetividade. O antropólogo Darell Posey explicou que existem índios especialistas em solos, plantas, animais, colheitas, remédios e rituais. Mas tal especialização não impede, no entanto, que qualquer homem ou mulher Kayapó tenha absoluta convicção de que detém os conhecimentos e as habilidades necessárias para sobreviver sozinho na floresta, indefinidamente, o que lhe dá grande segurança. Segundo Posey, “se o conhecimento do índio for levado a sério pela ciência moderna e incorporado aos programas de pesquisa e desenvolvimento, os índios serão valorizados pelo que são: povos engenhosos, inteligentes e práticos, que sobreviveram com sucesso por milhares de anos na Amazônia. Essa posição cria uma ‘ponte ideológica’ entre culturas que poderia permitir a participação dos povos indígenas, com o respeito e a estima que merecem, na construção de um Brasil moderno”.

O preconceito contra as línguas, as religiões e as ciências produzidas pelos índios alcançou também as artes, sobretudo a literatura. Os diferentes povos indígenas produziram uma literatura sofisticada, que foi menosprezada porque as línguas indígenas eram ágrafas (não possuíam escrita) e essa literatura foi passada de geração em geração através da tradição oral. As várias formas de narrativa e de poesia indígenas, por isso, não são consideradas como parte da história da literatura nacional, nem ensinadas nas escolas, tampouco reconhecidas e valorizadas pela mídia.

No século passado e no início deste século, vários estudiosos recolheram, no Pará e no Amazonas, literatura oral de primeiríssima qualidade. Um deles foi o general Couto de Magalhães, que não era militar mas advogado e político mineiro, que recebeu a patente de general porque, quando era presidente da província do Mato Grosso, comandou as tropas brasileiras na guerra do Paraguai. Como se sabe, o Império do Brasil se compunha de províncias e não de estados, e quem as governava tinha o cargo de presidente e não de governador. Pois bem, Couto Magalhães foi presidente de Mato Grosso, São Paulo e Pará. Ele não tinha, em princípio, qualquer motivo para simpatizar com os índios e compartilhava de todos os preconceitos de que falamos. No entanto, quando viajou ao Pará, no barco ouviu um índio contanto histórias, durante horas, para uma platéia atenta de tripulantes, que ria e participava ativamente. Curioso, Couto de Magalhães se aproximou e ouviu que falavam uma língua que não entendia: o nheengatu. Decidiu então aprender essa língua, só para conhecer as histórias. Ficou apaixonado com a beleza da literatura indígena, equiparando-a à grega. Recolheu e registrou muitas histórias, como aquelas que têm por personagem o Jabuti. Essas narrativas tinham na verdade a função educativa de transmitir valores e formas de comportamento. Couto de Magalhães comentou, em inteligente observação, que um povo cuja literatura tem um personagem como o Jabuti, lento e feio, que consegue vencer animais belos e fortes como a onça e o jacaré, só usando a astúcia, é um povo que tem civilização “para dar e vender”. “Um vomo que ensina que a inteligência vence a força, é um povo altamente civilizado, é um povo altamente sofisticado”, afirma.

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Muitos recolheram narrativas que, talvez agora, com a recente legislação (Lei n° 11.645, de 10/03/2008, incluindo no currículo oficial de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”) possam chegar aos estudantes e à população brasileira, permitindo que não ignorem mais esse patrimônio cultural da humanidade – a literatura indígena.

3° EQUÍVOCO – CULTURAS CONGELADAS
O terceiro equívoco é a idéia do “CONGELAMENTO” das culturas indígenas. Criou-se para a maioria dos brasileiros a imagem de como deveria ser o índio: nu ou de tanga, no meio da floresta, de arco e flecha, como descrito por Pero Vaz de Caminha. Essa imagem foi “congelada”, persistindo até hoje. Qualquer mudança nela provoca estranhamento. Quando o índio não se enquadra nessa imagem, vem logo a reação: “Ah! Não é mais índio”. Para essas pessoas, o “índio autêntico” é o da carta de Caminha e não aquele índio de carne e osso que conosco convive, que está hoje no meio de nós.

Para impedir a demarcação de terras indígenas e reforçar preconceitos, diz-se: “esses ai não são mais índios, já estão de calça e camisa, de óculos e relógio, e falando português, não são mais índios”. Cria-se uma nova categoria, desconhecida pela etnologia: o ex-índio! Alias, isso acontece com todos nós. O uso de jeans, tão corrente no Brasil, não foi inventado por nenhum brasileiro. A forma de construir em concreto armado também não é técnica brasileira. A tecnologia do telefone celular e do computador não é brasileira, enfim, toda essa parafernália que usamos – os milhares de itens culturais presentes no nosso cotidiano – não tem necessariamente suas raízes em solo brasileiro.

Então, o brasileiro pode usar coisas produzidas por outros povos – computador, telefone, televisão, relógio, rádio, aparelho de som, luz elétrica, água encanada – e nem por isso deixa de ser brasileiro. Mas o índio, se fizer o mesmo, deixa de ser índio. Quer dizer, nós não concedemos às culturas indígenas aquilo que queremos para a nossa: o direito de entrar em contato com outras culturas e de, como conseqüência, mudar.

4º EQUÍVOCO – OS ÍNDIOS FAZEM PARTE DO PASSADO
O quarto equívoco consiste em pensar que os índios fazem parte apenas do passado do Brasil. Num texto de 1997, sobre biodiversidade, sob a ótica de um índio, Jorge Terena escreveu que uma das consequências mais graves do colonialismo foi justamente taxar de “primitivas” as culturas indígenas, considerando-as como obstáculo à modernidade e ao progresso: “(Eles) vêem a tradição viva como primitiva, porque não segue o paradigma ocidental. Assim, os costumes e as tradições, mesmo sendo adequados para a sobrevivência, deixam de ser considerados como estratégia de futuro, porque são ou estão no passado. Tudo aquilo que não é do âmbito do Ocidente é considerado do passado, desenvolvendo uma noção equivocada em relação aos povos tradicionais, sobre o seu espaço na história”.

Os índios, na verdade, estão encravados no nosso passado, mas integram o Brasil moderno, e não é possível imaginar o Brasil do futuro sem a riqueza das culturas indígenas. Se isto por acaso ocorresse, o país ficaria pobre, muito pobre, e feio, muito feio.
5º EQUÍVOCO – O BRASILEIRO NÃO É ÍNDIO
Por último, o quinto equívoco é o brasileiro não considerar existência do índio na formação de sua identidade. Há 500 anos não existia no planeta Terra o povo brasileiro. Esse povo é novo, foi formado nos últimos cinco séculos com a contribuição, entre outras, de três grandes matrizes: as européias, assim no plural, representadas basicamente pelos português, mas também pelos espanhóis, franceses, italianos, alemães, poloneses, etc.; as africanas, também no plural, da qual participaram diferentes povos como os sudaneses, yorubás, nagôs, gegês, ewes, haussás, bantos e outros tantos. E também as matrizes indígenas, formadas por povos de várias famílias lingüísticas como o tupi, o karib, o aruák, o jê, o tukano e muitos outros.

Depois as migrações de outros povos como os japoneses, os sírio-libaneses, os turcos, vieram enriquecer ainda mais a nossa cultura. No entanto, como os europeus dominaram política e militarmente os demais povos, a tendência do brasileiro, ainda hoje, é se identificar apenas como “vencedor” – o de matriz européia – ignorando as culturas indígenas e africanas. Isso reduz e empobrece o Brasil, porque acaba apresentando aquilo que é apenas uma parte, como se fosse o todo.

O índio, no entanto, permanece vivo dentro de cada um de nós, mesmo que não saibamos disso. Não é uma questão genética, é uma questão cultural. Ao fazermos nossas opções de culinária, música, dança, poesia, de onde saem os critérios de seleção? É ai que afloram as heranças culturais, incluindo as indígenas e as negras.

No entanto, se não vemos o índio e os negros como antepassados, é porque acabamos por assumir a identidade veiculada pela ideologia dominante, que reivindica apenas a matriz européia, que nos deu a base da língua que falamos e marcou inapelavelmente nossa cultura, e da qual temos motivos para nos orgulhar. No entanto, precisamos também conhecer e ter orgulho da contribuição das culturas indígenas e das diferentes culturas africanas que marcaram a nossa forma de ser.

Esses não são os únicos equívocos que cometemos em relação aos nossos índios e a nós mesmos, mas talvez sejam aqueles que mereçam urgentemente ser discutidos e reconsiderados.

Texto de JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE
Coordenador do Programa de Estudo dos Povos Indígenas / UERJ

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